Poema Mais-Valia
carandiru na etimologia tupi-guarani
de alguma língua arquivada em papel mofado
é a soma de carandá mais irú
que quer dizer abelha da carnaúba
carnaúba que faz cestos trançados
cestos cheios de abelhas
abelhas ociosas espremidas aos montes
num enxame, uma em cima da outra
carandiru é um grande cesto-inferno
de concreto preto rachado de ferro enferrujado
onde mais vale setenta e quatro
do que cento e onze
e o que são cento e onze
perante setenta e quatro?
setenta e quatro policiais armados
cento e onze homens-abelhas fuzilados
abelhas arruinadas em celas
celas de abelhas enclausuradas
abelhas que não fazem mais-valia
pois mais vale um enxame contido do que solto do cesto
mais vale a parcimônia
de vinte e quatro anos de julgamento
do que o pranto das cento e onze mães desconsoladas
virgens marias pretas e faveladas
indigentes aidéticos bichas sifilíticas raquíticos
aviõezinhos pretos gordos nordestinos
estupradores traficantes pais de família
cento e onze no pátio, depois nos corredores, amontoados
o carandiru é um grande cesto cheio de sangue
sangue de sabor que não o do mel da abelha
sangue amargo, sangue quente
sangue dos cento e onze executados a sangue frio
sangue dos cento e onze
que também corre em veia
dos outros cento e tantos incontáveis
homens-abelhas durante esses mais de quinhentos anos
nessa multidão de corpos de homens-abelhas
não cabe o zangão-policial
pois mais vale setenta e quatro zangões de pica-revólver em riste
do que cento e onze
cento e onze pelados
nenhum usava farda
pois mais vale a farda dos setenta e quatro
do que o despudor dos cento e onze defuntos de olhos abertos
cento e onze daria para encher quantos camburões?
caberia cento e onze em uma cela só?
caberia cento e onze até numa vala só
vala comum de desvalidos sem direito a um valei-me deus!
cento e onze, deixe-me ver tua grande cara
nesse carandiru de corpos estirados
em grandes montes de cento e onze
cento e tantos homens numa grande pilha de sem-nomes
apenas cento e onze